Estávamos no início dos anos oitenta, portanto, faz quarenta anos que esta história aconteceu. Era o final da tarde, na hora que um grupo de homens se reunia a beira do rio, para contar histórias. O espaço era bem democrático. Mas depois descobri que o regime militar deixou as pessoas viverem em paz naquela cidadezinha não fazia muito tempo. No entanto, a distância e o isolamento fez com que gente perseguida pelo regime viesse buscar abrigo ali. Mas isto vim a saber muito tempo depois.
Naquela tarde, o assunto girava ao redor da questão indígena. Os índios que sempre foram submissos começaram a querer a demarcação de suas terras, assistência à saúde indígena, escolas próprias onde se ensinasse nas línguas indígenas. E o mundo indígena se organizou. E a sociedade ficou com medo. Algumas pérolas de linguagem foram ditas, todas ofensivas aos índios. Índio é preguiçoso, é traiçoeiro, ele mente e daí para frente.
Um senhor, pequeno fazendeiro, político, contou a seguinte história pra provar que os índios eram violentos: No tempo das correrias que era o método mais eficaz pra limpar os seringais de gente indesejada, na calada da noite, os mateiros cercavam a aldeia indefesa e de manhãzinha ateavam fogo nas malocas. Quando os índios saiam em correria eram trucidados como se fossem animais selvagens. O avô deste senhor participou de várias correrias, e argumentava que os índios eram violentos e por isso deviam morrer, porque nunca dariam certo no trabalho da seringa. Para dar um exemplo, contou que durante uma correria viu um menino pequeno perdido no meio dos cadáveres e resolveu na hora que queria levá-lo junto para ser criado na casa dele. Mas índio é muito violento, e o curumim quando foi posto nas suas costas deu-lhe uma mordida. Índio é muito violento. Não teve dúvidas, jogou o curumim para o alto e o decepou. Índio é muito violento. Depois disto arrancaram as orelhas dos índios para serem pagos pela dona do seringal. Nenhum arrependimento, nenhum problema de consciência, nem na geração que participou dos massacres e nem nos seus descendentes.
O mesmo aconteceu com os negros, escravizados, torturados e mortos na longa travessia da África para o Brasil. Numa sociedade racista, os outros são considerados inferiores, sub-humanos. O Estado, a quem os cidadãos transferem o seu direito de auto-defesa, tem obrigação de agir contra o racismo e deve ficar claro que atitudes e comportamentos racistas não serão tolerados. O Brasil tem uma ordem social marcada pela escravidão. Uma escravidão baseada na raça. Não bastam atitudes individuais, mas os mecanismos sociais de ascensão na vida tem que mudar. Para isso existem políticas de quotas nas Universidades. O racismo é desumano, irracional, embrutecedor. Ele justificou na história um genocídio levado a termo por pessoas cultas, amantes da música clássica e da filosofia grega. No Brasil, o racismo provoca muito sofrimento e estraga a vida. Não podemos tolerar o racista, as brincadeiras racistas, as piadas racistas. Temos todos dentro de nós um racista em potencial, justificado pela cultura, pelo ambiente, pelo humor e, às vezes, até pelo bem-querer. Longe de nós toda a soberba, sejamos humildes, reconhecendo os nossos pecados frutos do racismo e da prepotência.
ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO DE MANAUS
JORNAL: EM TEMPO
Data de Publicação: 7.6.2020
Fonte: Arquidiocese de Manaus
Postar um comentário